Livraria Cultura
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terça-feira, 13 de setembro de 2016
Só Garotos (Patti Smith)
"Tenho
certeza de que, enquanto descíamos a grande escadaria, eu parecia ser a mesma de sempre, uma menina embasbacada de doze anos, toda braços e pernas. Mas secretamente eu sabia que havia sido transformada, comovida pela revelação de que os seres humanos criavam arte, de que ser artista era ver o que os outros não conseguiam ver. (...) Ele não tinha certeza se era uma pessoa boa ou não. Se era altruísta. Se era demoníaco. Mas de uma coisa tinha certeza. Era um artista."
"Costumávamos rir de nós mesmos quando crianças, dizendo que eu era uma menina má tentando ser boa e que ele era um bom menino tentando ser mau. Com o passar dos anos esses papéis se reverteriam, depois reverteriam de novo, até que acabamos aceitando nossa natureza dual. Contínhamos
princípios opostos, luz e trevas."
"(...) eu me sentia muito sozinha. Encontrara alívio em Arthur Rimbaud, com quem havia deparado em uma banca de livros do outro lado da rodoviária de Filadélfia quando tinha dezesseis anos. Seu olhar arrogante me encarou da capa de
Illuminations
. Ele possuía uma inteligência irreverente que me acendera, e tomei-o por um compatriota, um parente, e até um amor secreto. Sem ter os 99 centavos para comprar o livro, surrupiei-o."
"Eu antes vivia no mundo dos meus livros, a maioria deles
escrita no século XIX. Embora estivesse preparada para dormir em bancos, metrôs e cemitérios, até arranjar um emprego, não estava preparada para a fome constante que me consumia. Eu era uma coisinha magricela com um metabolismo acelerado e um grande apetite. O romantismo não conseguia saciar minha necessidade de comida. Até mesmo Baudelaire precisou comer. Suas cartas traziam muitos gritos desesperados de desejo de carne e cerveja."
"Quem
entende o coração de um jovem senão ele mesmo?"
"Eu estava entre o caos e a frustração, cercada de canções inacabadas e poemas abandonados. Ia o máximo que podia até bater no muro, minhas próprias limitações imaginárias. Até que conheci um sujeito que me contou seu segredo, e era bem simples. Se você bater no muro, não pare."
"Estávamos andando em direção à fonte, o epicentro da ação, quando um casal mais velho parou e ficou abertamente nos observando. Robert gostava de ser notado, e apertou minha mão com carinho. Oh, tire uma foto deles, disse a mulher para o marido distraído, acho que são artistas. Ora, vamos logo, ele deu de ombros. São só garotos."
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quinta-feira, 25 de agosto de 2016
As Intermitências da Morte (José Saramago)
"(...)
cada um de nós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe."
"Sobre a mesa há uma lista de duzentos e noventa e oito nomes, algo menos que a média do costume, cento e cinquenta e dois homens e cento e quarenta e seis mulheres, um número igual de sobrescritos e de folhas de papel de cor violeta destinados à próxima operação postal, ou falecimento-pelo-correio. A morte acrescentou à lista o nome da pessoa a quem se dirigia a carta que tinha regressado à procedência, sublinhou as palavras e pousou a caneta no porta-penas. Se tivesse nervos, poderíamos dizer que se encontra ligeiramente excitada, e não sem motivo. Havia vivido demasiado para considerar a devolução da carta como um episódio sem importância. Compreende-se facilmente, um pouco de imaginação bastará, que o posto de trabalho da morte seja porventura o mais monótono de todos quantos foram criados desde que, por exclusiva culpa de deus, caim matou a abel. Depois de tão deplorável acontecimento, que logo no princípio do mundo veio mostrar como é difícil viver em família, e até aos nossos dias, a cousa tinha vindo por aí fora, séculos, séculos e mais séculos, repetitiva, sem pausa, sem interrupções, sem soluções de continuidade, diferente nas múltiplas formas de passar da vida à não-vida, mas no fundo sempre igual a si mesma porque sempre igual foi também o resultado. Na verdade, nunca se viu que não morresse quem tivesse de morrer. E agora, insolitamente, um aviso assinado pela morte, de seu próprio punho e letra, um aviso em que se anunciava o irrevogável e improrrogável fim de uma pessoa, tinha sido devolvido à origem, a esta sala fria onde a autora e signatária da carta, sentada, envolta na melancólica mortalha que é seu uniforme histórico, com o capuz pela cabeça, medita no sucedido enquanto os ossos dos seus dedos, ou os seus dedos de ossos, tamborilam sobre o tampo da mesa."
"(...) a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem."
"À Igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse (...), uma de suas especialidades tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso."
"Isso a que chamas mistérios é muitas vezes uma proteção, há os que levam armaduras, há os que levam mistérios."
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quinta-feira, 21 de julho de 2016
A Besta Humana (Émile Zola)
"Àquela
hora, a estação estava deserta e calma; e ele agitava-se nela, com o aspecto cada vez mais enervado daquela paz, naquele tormento de homem ameaçado de uma catástrofe,
que acaba por desejar ardentemente que ela venha."
"Da cama em que continuava sentada, Séverine o acompanhava de um lado para outro, com os mesmos olhos arregalados. Na calma e companheira afeição que sempre tivera pelo marido, a desmedida dor em que o via era de dar pena. Teria desculpado os palavrões e as pancadas, caso tão desatinada reação não a surpreendesse tanto, pois era o que ainda a espantava. Ela que, passiva e dócil, bem moça aquiescera aos desejos de um velho, que mais tarde se adaptara ao casamento simplesmente por querer conciliar as coisas, não conseguia compreender tal explosão de ciúme por erros antigos, dos quais se arrependia. Sem imoralidade, pois sentia-se pura, apesar de tudo, em seu corpo ainda mal desperto, ela observava o marido ir e vir em giros furiosos, como teria observado um lobo, um ser de outra espécie. O que então havia nele? Muitos não tinham tanta raiva! O que a assustava era constatar o animal, que há três anos já pressentia pelos grunhidos surdos e que hoje se desencadeava, furioso, pronto para morder. (...) Na sua docilidade passiva, não podia senão obedecer. Instrumento de amor, instrumento de morte."
"Desde que a possuíra, a ideia de matar não o perturbava mais. Estaria contida pela posse física a vontade assassina? Será que, nas sombrias profundezas da besta humana, possuir e matar se equivalem? Ignorante demais, ele não
raciocinava, não tentava abrir essa porta do horror."
"(...) continuamente, desfilavam tantos homens e mulheres no fragor dos trens, sacudindo a casa e se afastando a todo vapor. É claro que a Terra inteira passava por ali, não só franceses, também estrangeiros, pessoas dos lugares mais distantes, já que ninguém mais era capaz de ficar em casa e todos os povos, como agora se dizia, em breve seriam um só. Era isso o progresso: todos irmãos, rodando juntos, para longe, rumo à terra de leite e de mel. Ela tentava contá-los, tirando a média, imaginando tantos por vagão: era uma quantidade enorme, que ultrapassava a sua capacidade. Às vezes achava reconhecer alguns rostos, o de um senhor de barba alourada, provavelmente inglês, que toda semana fazia a viagem a Paris, e o de uma senhora morena, passando regularmente às quartas e sábados. Mas o trovão os levava embora, ela não tinha certeza de tê-los visto, todos os rostos se apagavam e se confundiam, iguais, dissipando-se uns nos outros. A torrente seguia, sem deixar nada de si. E o que a entristecia era que, por baixo daquele fluxo contínuo, sob o desfile de tanto conforto e tanto dinheiro, ninguém naquela multidão tão sôfrega sabia da sua presença ali, em perigo de vida. E isso a tal ponto que, se o marido a eliminasse uma noite, os trens continuariam a passar próximo ao seu cadáver, sem a menor noção do crime ocorrido no interior daquela casa solitária."
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quarta-feira, 6 de julho de 2016
As Meninas (Lygia Fagundes Telles)
"Abriu
o portão com um gesto desabrido, heroico, gesto de quem assume não o seu caminho, prosaico demais, imagine,
mas o próprio destino."
"(...) como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio, de amor ao mundo mas sem entrar nele, é lógico. Ficar de fora, Mantenha distância, diz aquele ônibus bufando tanto pelo traseiro que não fico atrás nem um minuto. Detesto guiar, entrar nas engrenagens. Nas besouragens, diz a Aninha. Enredos. Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina."
"Gato à toa, por onde você anda. Hein? Dava aulas diárias de preguiça e luxúria mas nunca repetia os movimentos, todo bailarino devia ter um gato. A astúcia. Ao mesmo tempo, o abandono."
"São as ovelhas pretas as mais amadas (...)."
"(...) quero ficar só. Gosto muito das pessoas, mas essa necessidade voraz que às vezes me vem de me libertar de
todos. Enriqueço na solidão (...)."
"(...) os ponteiros eram setas agressivas. Só valem os números que apontamos, avisavam essas setas empoladas espetando o alvo. O som enérgico do coração mecânico batendo dentro do
esquife. Que coisa mágica o tempo."
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